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04/12/2013

Pina Bausch: a linguagem da dança-teatro



A formação profissional de Pina Bausch se deu na convivência com diversos tipos de artistas, que enriqueceram seu conhecimento multidisciplinar e articulador. Seu olhar sobre o homem era espacial, tinha componentes de pintora, de fotógrafa, de comunicadora, de dançarina, de mulher.

Todos os trabalhos que Bausch produziu foram fruto de profunda observação e compreensão da subjetividade humana, que se forma na vida em comunidade. Ela tinha como método de trabalho investigar os elementos que movem o homem e, dos bailarinos, exigia que expressassem suas próprias individualidades. Os espetáculos que colocou no palco, com a companhia Tanztheater Wuppertal, tinham vida, escancaravam a subjetividade do bailarino, de forma cuidadosa e detalhada. Ao ser dançado, o sentimento era exprimido num corpo íntegro, que realmente vivia aquele estado de espírito. Pina propunha os sentimentos sem apresentar juízos de valor a respeito deles ou defini-los verbalmente. Para ela, os sentimentos formam um conteúdo a ser apresentado pelas potencialidades do corpo em dança. A coreógrafa olhava para a existência humana como um “vir a ser arte”, um sistema que comunica sensações, impressões e conclusões a respeito do mundo e da própria pessoa. “Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida; e, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas talvez possa se tornar arte” – Pina.

A companhia Tanztheater Wuppertal era um laboratório de criação. Pina Bausch não estipulava um roteiro prévio do espetáculo a ser montado, mas tirava seus componentes de respostas dos bailarinos às perguntas que fazia, a respeito do mundo, de aspectos pessoais ou dos locais que a companhia visitava. Respostas não verbais, mas dançadas. A coreógrafa partia da improvisação. “Como eu não podia chegar aos atores com um lema coreográfico, tendo de começar por outra parte, lhes formulei então perguntas que fazia a mim mesma. As perguntas existem para abordar um tema com toda cautela. Esse é um método bem aberto e, no entanto, preciso.”

A técnica de Pina não buscava um corpo construído, que, como em outras modalidades de dança, tem obrigação de ultrapassar as capacidades físicas e emocionais. Ela simplesmente buscava um corpo imerso em sentimento e fragilidade, independentemente de experiência anterior com a dança ou com o teatro.  Não havia distinção entre personagem e personalidade.  “Pois não contrato precipuamente dançarinos, estou interessada em pessoas. E, nas peças, essas pessoas são antes de tudo elas mesmas, não precisam representar. No trabalho, tento fazer com que encontrem elas próprias o que procuro. Só então o efeito é convincente, porque é autêntico” – Pina. Para caber na proposta de Pina, era suficiente que o conteúdo tratasse da existência, pois sua linguagem é construída na combinação do movimento dançante com o movimento cotidiano, ambos resultantes da subjetividade humana – que é desenvolvida pelo contato do homem com o outro e com o meio em que vive, sendo essa linguagem, portanto, universal.


"A mulher domina a batalha dos sexos", cena do espetáculo "Full Moon", de Pina Baush
Os corpos dos bailarinos se apresentavam sempre crus em relação a figurinos ou qualquer tipo de caracterização. A pretensão da coreógrafa era a de que simplesmente se mostrassem, pois eles próprios eram quem caracterizava a vestimenta e não o contrário. “Eu amo o real, a vida nunca é como um palco de dança, liso e tranquilo” – Pina. É importante ressaltar, porém, que a proposta de colocar o bailarino como ele mesmo em suas obras não procurava características pessoais, mas aspectos humanos que compõem quadros sociais. Caso contrário, os espectadores não alcançariam a identificação. As estruturas emocionais são genéricas, mas estão presentes em todas as individualidades humanas. “O que mostramos é algo pessoal, mas não privado. Mostra-se algo daquilo que todas as pessoas são” – Pina.

Outra marca de Pina Bausch foi a presença de outras culturas – maneiras de sentir, de se relacionar, de viver o cotidiano, hábitos – no seu repertório de espetáculos. Esses componentes não eram somente reproduzidos, mas recontextualizados ou até mesmo desconstruídos. A coreógrafa não se prendia a limites físicos – nem geográficos, nem dos próprios teatros em que sua companhia se apresentava. Os bailarinos se utilizavam dos arredores do palco e interagiam com o público, que participava e permitia o desenvolvimento do espetáculo. O palco é um conjunto infinito de possibilidades. Em Pina podia ter função concreta, fazendo papel de uma sala ou de um jardim, ou metafórica, como uma fronteira entre dois países. A trilha sonora dos trabalhos também cruzava fronteiras, não se restringia à nacionalidade dos temas trabalhados e contribuía para a atmosfera de “saturação” das obras, ou seja, para o excesso de informações.


Cena "Saudade", do filme "Pina", de Win Wenders
Pina se utilizava também da realidade ambivalente, ou seja, apresentava em seus espetáculos mais de um contexto e significado para os conteúdos das cenas. Se o riso se mostrava, ele podia ser sinônimo de alegria, constrangimento ou ansiedade. A natureza podia aparecer como ambiente de paz e resguardo ou de perigo. O humor, provocado diretamente ou consequência dessas ambivalências. Inclusive, ele esteve intimamente relacionado com o estranhamento causado por grande parte das peças de Pina. Como ela mesma definiu, o riso por parte do público pode ser reação a uma sensação de incômodo. O estranhamento também pode ser causado pela descontinuidade das cenas e os movimentos repetitivos dos bailarinos que reforçam sua mensagem. O conteúdo desperta desconforto não por ser desconhecido, mas por obrigar o espectador a encarar a realidade. “E nossa solitária tentativa é fazer visível, ou ao menos sugerir, aquilo que sempre se soube. Isso é o que está sempre a fazer qualquer artista em qualquer época” – Pina.

Em todas as obras de Bausch, existe um eixo que fica entre a “delícia e a desgraça”, justamente ligado à ideia das ambiguidades. “A realidade sempre tem esses dois lados, da beleza e da tristeza ao mesmo tempo” – Pina. Uma comparação típica que aparece nas criações da coreógrafa é a da natureza com a fraqueza humana, no sentido de que a natureza não é necessariamente sinônimo de coisa bela, mas desafiadora do homem. Em muitos de seus trabalhos os elementos da natureza eram colocados no próprio palco (plantas, terra, flores, água, pedras, etc.) e os bailarinos contaminavam-se por eles.

É possível resumir esses fatores da dança-teatro de Pina como um traçado do perfil do cotidiano humano. Seus espetáculos fogem das rígidas obrigações estéticas do balé clássico e, em seu lugar, inserem elementos enriquecedores do grau de realidade dos mesmos. O público deve se identificar com os bailarinos e com o conteúdo apresentado. Cada pessoa leva para si uma peça diferente, a partir da original. Bausch tinha o dom de construir obras sobre culturas diversas com profundidade e sem estereotipá-las. Ao passar pela vivência local de cada cultura retratada, tinha em si seus componentes vivos, para somar ao aspecto humano, escancarado nos bailarinos.

“Café Müller”, criado por Pina Bausch em 1978 e em parte apresentado no vídeo acima, é uma metáfora sobre a solidão, a falta de contato profundo entre as pessoas, o questionamento sobre as relações, encontros e desencontros humanos. Os corpos mergulham e colocam o público numa catarse profunda a respeito de tais dores. O casal destacado no vídeo repete incessantemente o movimento de separação e união, que representa a superficialidade das relações humanas e, ao mesmo tempo, o medo da solidão que não permite a separação definitiva. No homem loiro está representada a solidão, que faz o ser humano desmoronar e não ter forças para manter-se em pé novamente. Ele transita de um lado a outro, sem rumo, sempre próximo ao chão, sob o olhar de uma mulher que permanece distante dele, mesmo acompanhando, com estranhamento, o seu vagar. Pina Bausch circula também sem direção, com os braços abertos à espera de alguém e expressa em sua dança o conjunto de sentimentos pelos quais está tomada. A possibilidade frustrada do toque do outro, do apoio nos ombros do outro, que a faz continuar sem rumo uma vez que este outro não aparece.

O filme::

FONTE: Corpo em Dança
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